Cláudio Luciano Dusik (Claudinho) é Psicólogo, Neuropsicopedagogo, Doutor e Mestre em Educação. Possui diferentes formações nas áreas de Administração e Gestão Pública.
Atuou como psicólogo em hospitais, clínicas e escolas. Atualmente é Servidor Público concursado, professor universitário e coordenador do Polo UAB Esteio, além de participar em Conselhos Municipais neste município.
Claudinho ficou conhecido em todo o Brasil por causa de tecnologias que ele mesmo desenvolveu, pensando em mudar sua vida e de milhares de pessoas que também sofrem com doenças motoras. Também foi Condutor da Tocha Olímpica e foi um dos cinco entre milhares de brasileiros a ser diplomado Comendador de Direitos Humanos, em reconhecimento pela contribuição relevante na política e legislação brasileira sobre Inclusão e Acessibilidade.
Sua trajetória convida para a reflexão do potencial humano, da força da vida e do quão provisório e imprevisível pode ser o termo impossível.
Relato Pessoal de Cláudio Dusik
Sou o segundo filho entre seis. Tenho quatro irmãos e uma irmã. Com poucos meses de idade meus pais perceberam um pouco de fraqueza em mim e dificuldades para engatinhar. No entanto, o médico referiu não haver nada de anormal e que eles estavam ansiosos. Com quase um ano de idade levaram-me novamente ao neurologista e, após muitos exames e estudos médicos, descobriram que eu possuía Amiotrofia Espinhal Muscular Infantil Tipo I. Trata-se de uma síndrome rara chamada Werdnig Hoffmann, que é uma doença do neurônio motor, antigamente apelidada de “boneco de pano” ou “boneco de trapo”, pela semelhança da mobilidade (moleza) corporal, precisando de apoios para sentar e firmar a cabeça.
Essa síndrome implica em terminalidade de vida por apresentar degeneração óssea, atrofia e degeneração muscular, acarretando com isso deformidade física, perda progressiva de movimentos e problemas cardiorrespiratórios. Além desses sintomas, estão incluídos dificuldades de deglutição e sucção. A expectativa de vida para crianças com essa doença se limita aos sete anos de idade e, em raros casos, chegam aos quatorze anos. Na época em que fui diagnosticado, não eram encontrados na literatura médica casos acima desta idade.
Esperançosos ou desesperados, meus pais investiram na busca de recursos médicos em várias localidades do RS e SP, encontrando sempre as mesmas respostas e explicações. Seguidamente fui submetido a diversos exames médicos, sendo muitos deles dolorosos. Não conseguindo respostas na ciência, partiram para uma “peregrinação” religiosa, visitando todo tipo de crença que desse esperanças. Aos quatro anos, com o nascimento de minha irmã (com a mesma síndrome), as peregrinações diminuíram.
Desde o início, sempre fui informado sobre minha doença, no que ela implicava e no por que de cada procedimento (tanto médico como religioso). Acredito que isso me conferiu recursos para reconhecer meus limites, minhas possibilidades e dar-me a chance de fazer escolhas para aceitar (conformar) ou buscar meios de superação e de qualidade de vida. Exemplo disso foi que, com cinco anos de idade, me foi dada a escolha entre frequentar ou não a escola, sendo sempre claro meu limite de tempo de vida e perdas motoras progressivas, mas também tendo claras as possibilidades de fazer amigos e de me integrar socialmente. Aprendi a lidar com fatores bons e ruins e suas implicações.
A expectativa inicial de minha mãe em colocar-me na escola era minha socialização, e não necessariamente o domínio dos conteúdos escolares ou avanço de série. Como, a princípio, eu teria apenas sete anos de vida, eu precisava ter os melhores sete anos a que poderiam me propiciar, e a escola contribuiria no sentido de eu conhecer outras crianças e novas brincadeiras, mas não esperavam necessariamente da escola uma preparação para um futuro acadêmico e profissional, era o que enfatizavam meus pais.
Porém, mesmo tendo plenas capacidades cognitivas e de comunicação, e na época ainda de escrita manual, encontrei dificuldades de disponibilidade de inclusão escolar. As escolas de ensino regular – tanto públicas como privadas – negaram minha matrícula dizendo não estarem preparadas para receber alunos com minha dificuldade. E indicavam que, no meu caso, eu deveria ser matriculado em escola de educação especial. Minha mãe, inconformada com isso, porque seu objetivo estava na minha socialização, no brincar e me divertir, relutava em me matricular na escola com outras crianças na mesma condição. Em seu pensamento, colocar-me com crianças que também tivessem dificuldades de brincar e de socializar, inviabilizaria esse processo, sendo mais fácil se eu convivesse com crianças sem estas dificuldades.
Mesmo assim, por falta de opção, visitamos tais escolas de educação especial em busca de uma vaga. No entanto, a escola da região destinava-se a crianças com outras características, em geral crianças com deficiência intelectual. Como não era meu caso, não fui aceito. Dessa forma, vivenciei tanto a exclusão do sistema comum de ensino, como também do sistema de ensino especial.
Não havendo, na legislação, dispositivos que garantissem meu direito de matrícula, antes de desistir da busca de escola, como alternativa minha mãe buscou me matricular em uma escola confessional privada, recorrendo aos valores cristãos que a instituição seguia. Desta vez, por causa desses valores, o diretor foi atento e realizou alguns testes de leitura e escrita comigo, aceitando minha matrícula por um período de teste. No entanto, como tal experiência era em torno do acompanhamento dos conteúdos curriculares, e não do brincar desejado por minha mãe, fui colocado na primeira série e não na pré-escola, mesmo com apenas cinco anos de idade.
Dizia o diretor que se eu fosse capaz de aprender e acompanhar a turma, então minha matrícula seria efetivada. Caso contrário eu não poderia permanecer na escola. Diante disso, de um lado havia a expectativa da escola de que eu aprendesse, e no ritmo igual ao das demais crianças e, de outro lado, havia a expectativa da família de que eu brincasse e me socializasse.
Na primeira série os objetivos principais dos meus pais não foram priorizados, pois a minha situação era muito nova para os professores. Além de minha sala ser no segundo andar de um prédio sem elevador, ficava limitado e impossibilitado de ir ao pátio da escola. Os docentes acreditavam ser melhor eu ficar sentado na frente de todos, bem próximo à professora, mas com isso eu ficava de costas para os colegas e, devido minha incapacidade de virar para trás, eu enxergava apenas o quadro. Eu sabia que havia várias crianças atrás de mim, pois ouvia suas falas, seus barulhos e sentia seus movimentos, mas não via seus rostos nem suas aparências. Nos intervalos e nos períodos de educação física eu ficava sozinho na sala aguardando o retorno de todos.
Como o objetivo da escola era a alfabetização, recebi a certificação do conhecimento já no segundo bimestre. O diretor, ao terminar o período de experiência que havia designado, mostrando-se muito feliz, teria dito para minha mãe:
“Dona Eliza! Nós imaginávamos que o Claudinho não conseguiria aprender e nem acompanhar a turma, mas para nossa surpresa, a turma não o acompanhou! Olha aqui Dona Eliza (mostrou meus trabalhos e provas), o Claudinho já sabe ler e escrever sem erros ortográficos“.
Entregando meu certificado disse a ela: “Viu! A senhora nem precisa mais trazê-lo!”
Mas para minha mãe essa competência não era novidade, e nem suficiente. Não adiantava, para ela, eu conhecer todas as letras e números e não conhecer meus colegas. Não adiantava eu saber formar palavras, frases e textos e não ter aprendido formar amizades. Então, mantendo a paciência, minha mãe cobrou isso da escola e cobrou a promessa de que se eu aprendesse minha matrícula seria efetivada. Então fui devidamente matriculado e frequentei de forma esporádica as aulas até ao final do ano. Minha mãe não deixou de me levar completamente para aula, mesmo já aprovado, porque em seu pensamento seria minha presença que provocaria mudanças na escola, e não minha ausência.
Na segunda série, a sala era térrea, mas tinha um degrau de acesso tão alto que até meus colegas sem deficiências tinham dificuldade de subi-lo. Ficava inviável para eu ir ao pátio com auxílio apenas dos colegas. Em situação normal, sempre precisava de dois adultos para subir e descer o degrau. Mas, ao menos nesse ano (1984), eu podia ser colocado próximo a porta e observar as crianças brincarem no pátio. Quando eu as via, era como se eu mesmo estivesse brincando. Lembro que eu ficava eufórico quando as via correndo, jogando, brincando. No meu imaginário era como se eu estivesse vivenciando concretamente a experiência. Eu tinha prazer de ir para a escola por causa daqueles quinze minutos que ficava na porta observando. Quando adoecia, por frequentes problemas respiratórios, a professora me enviava as tarefas para estudos domiciliares.
Lembro-me de um episódio em que terminou o intervalo e, na porta, vi o pátio se esvaziar sem minha turma retornar. Fiquei muito assustado e comecei a chorar e gritar por ajuda. Eu estava acostumado a ficar sozinho na sala, aguardando a turma voltar, mas ver o pátio vazio foi uma situação nova, pois imaginei que não estava sozinho apenas na sala, mas na escola inteira. Depois de certo tempo, um garoto muito pequeno passou por perto e escutou meus choros e chamados. Com dificuldade subiu aquele degrau alto de minha sala, viu que não conseguiria me descer sozinho e, então, começou também a chorar. Estavam duas crianças chorando a beira daquele degrau que, na nossa percepção, parecia um precipício. Após mais um tempo, apareceu a professora do garoto, que o procurava preocupada. Viu que eu estava assustado, e que seu aluno tentara me ajudar, então procurou minha professora e a encontrou na pracinha com a turma, pois era o período de educação física e eu teria esquecido que demorariam. No entanto, vendo que o menino tentou me ajudar, sua atitude provocou uma cooperação entre nossas professoras.
A professora do menino se prontificou a ficar comigo em sua sala nos períodos em que minha turma fosse para a educação física, pois seria dificultoso me levarem para a pracinha pela falta de acessibilidade. Então, as duas professoras me desceram o degrau e me conduziram até a sala com o garoto. Nessa sala eu me maravilhei, pois fui colocado diante de uma mesa redonda ao lado de outras crianças. Nessa turma, as crianças ficavam em pequenos grupos em torno de mesas circulares, sendo muito diferente da minha turma, em que todos ficavam enfileirados. Ali eu não estava de costas, mas estávamos de frente uns para os outros, podendo trocar conversas, materiais e cores. Era uma turma de educação infantil, uma sala cheia de brinquedos e interações, nas quais as crianças não me estranhavam. Eu sempre aguardava ansioso que minha turma fosse para a pracinha e eu levado para essa sala. Ao mesmo tempo, esperava essa interação na minha própria turma.
Somente na terceira série que as coisas mudaram. A entrada da sala não havia degraus e eu facilmente poderia ser levado ao pátio. Um seminarista, estagiário de magistério, assumiu nossa turma e este me incluía nos grupos, criando um mural chamado “Ajudante do Dia”. A primeira atitude do professor, ao entrar na sala, era a de colocar nesse mural o nome do colega que seria meu ajudante naquela tarde, que teria a tarefa de me auxiliar no manuseio de materiais e me conduzir ao pátio no intervalo. Ao fazer isso, ao invés de convidar a criança a sentar-se ao meu lado, ele me colocava ao lado dela, assim, eu ficava em diferentes lugares da sala, não mais só na frente. Cada dia era um colega diferente e, com isso, comprometia toda a turma a me auxiliar. Com isso eu conheci cada um de meus colegas e estes me conheceram.
No intervalo, o professor não me deixava na sala sozinho e nem ia para a sala dos professores, mas com o ajudante me levava ao pátio para brincar. Divertia-me muito, dessa vez participando realmente, não apenas no imaginário. Quando o ajudante me colocava próximo a uma brincadeira, o professor instigava as crianças a encontrarem formas de que eu participasse, adaptando-a. Por exemplo, eu assistia os colegas brincando de Pula-corda e o professor perguntava a todos: “Gente, como o Claudinho pode brincar disso?“. Todos paravam, pensavam e sempre surgiam ideias: “Já sei Sôr, a gente trilha a corda e o ajudante passa correndo com ele!”. Assim, após o ajudante passar comigo por baixo da corda, outros colegas também queriam me levar, inclusive os de outras turmas.
Na brincadeira de Amarelinha sugeriram eu jogar a pedrinha em algum número e passarem comigo, em minha cadeira de rodas, desviando pelos outros números. No futebol, algumas vezes houve sugestões de eu apitar o jogo, sendo o juiz, e outras vezes a sugestão era eu ser ajudante de goleiro. Certa vez, uma menina sugeriu: “Sôr, hoje o Claudinho ficará nos pênaltis!”. “Mas como ele chutará a bola?“, perguntou o professor. Então, puxando um cordão de sua mochila lhe respondeu: “Assim: a gente amarra o cordão no tênis dele, alguém joga a bola em seu pé, e eu puxo o cordão para ele chutar“. Quando ela puxou a corda e eu chutei a bola, me senti o próprio Renato Portaluppi goleando o Mazarópi.
Mas entre todas as brincadeiras, a que eu mais gostava era a de Pega-pega: algum colega me empurrava correndo atrás dos outros e eu ficava todo agitado e feliz. Entremeio à diversão, algumas vezes ocorreu de trancar a cadeira de rodas nos desníveis do pátio e eu cair. Eu ficava todo esparramado no chão sem saber se dava risadas ou se chorava. As risadas pela aventura, pela adrenalina solta, mas o choro pelo susto e por ver todos assustados ao meu redor. Eu estava no auge da vida! Conheci a vida como ela é: com suas aventuras e desventuras, com seus obstáculos e seus acessos, com alegrias e tristezas. Muito além de conteúdos escolares, que ao longo da vida esquecemos, a escola me ensinou algo inesquecível: o desejo de vida!
No entanto, nesta época, com sete anos, a idade limite definida pela medicina clássica, fiquei muito debilitado. As profecias médicas pareciam se cumprir e eu perdia movimentos, meu corpo se deformava atrofiando e encurvando, aumentando minha dificuldade de me acomodar e permanecer sentado. Mas eu não queria parar de estudar, gostava de ir para escola, pois o professor era atencioso e me disponibilizava novas adaptações.
Porém o limite chegou, precisei me despedir da turma, pois com a deformidade de minha caixa torácica as costelas perfuravam alguns órgãos, necessitando hospitalização. Lembro-me da dor que era intensa e dos medicamentos que já não faziam mais efeito. Com momentos contados de vida, eu recebia visitas de amigos, vizinhos e familiares.
Mas existem coisas que não se explicam pela Ciência e pela racionalidade. Há algo que existe entre o céu e a terra e que a ciência desconhece. Se eu não tivesse vivenciado, não acreditaria. Uma mulher que era conhecida de minha mãe foi me visitar e disse que Jesus me curaria, pois Ele teria um propósito para minha vida, e pediu para orar. Meu pai se revoltou e impediu que a mulher orasse por mim. Mas minha mãe esperou que ele saísse e em desespero me levou até ela. Ela colocou suas mãos sobre minha cabeça e orou. Lembro-me do alívio da dor e dos estalos nos locais das dores. Fazia três meses que não conseguia mais sentar. Logo depois, pedi para sentar, estava com fome e pedi para comer. Após alguns dias pedi para retornar para escola, os colegas me receberam com alegria e surpresa. Uma colega, surpresa e sensibilizada exclamou: “professor, ele voltou do céu?!”.
Como o professor envolvia os alunos comigo, inclusive de outras turmas, mesmo sem sua presença nas séries seguintes os colegas, e já amigos, continuavam interagindo comigo, me auxiliavam e me levavam ao pátio. Isso se tornou comum na escola, não havendo necessidade dos professores solicitarem aos colegas que o fizessem.
Mesmo sem as preconizações da atual política de educação inclusiva, as coisas foram se desenrolando e minha presença se tornou algo natural na escola. Eu conheci a escola e a escola me conheceu. Naquela época, eu não era um cidadão de direitos, mas um menino de sorte, e muita sorte! Pois enquanto eu estava na escola, aprendendo, brincando e me socializando, incontáveis outras crianças iguais a mim estavam sendo excluídas ou segregadas em ambientes que não as desenvolviam.
Então, por mais que hoje haja queixas da precariedade das condições das escolas comuns em receber alunos com necessidades especiais, já há um enorme avanço existir a política de educação inclusiva, pois todos têm a oportunidade de estarem na escola.
Na sétima série, após concorrer com duas outras chapas, fui presidente do Grêmio Estudantil, fato este que evidenciou o sucesso de minha socialização, pois não tinha apenas a amizade, mas também a confiança e a credibilidade dos colegas.
No ensino médio (1992) fui aceito na rede pública de ensino, visto que já havia leis que me amparassem. Da mesma forma, recebi a atenção necessária para minha inclusão e adaptações. No primeiro dia de aula eu não pude acessar a sala por essa se localizar no segundo andar, gerando dificuldades de acesso. Porém, os próprios alunos, alguns que estudaram comigo na escola anterior, se envolveram na troca de sala de aula. Realizaram a troca de uma turma que estava em uma sala térrea para o segundo andar, e minha turma desceu para o andar térreo. Mesmo a sala sendo térrea, havia um degrau no corredor de acesso e, mostrando-se constrangida, a diretora disse-me que não me preocupasse, pois já havia solicitado uma rampa à Corregedoria de Educação. Até eu terminar o ensino médio e sair da escola a rampa não veio, mas não faltou auxílio dos colegas e não foi impeditivo de me deslocarem por todos os espaços.
Quando há falta de acessibilidade arquitetônica e não houver falta de colaboração e boa vontade com o outro, a inclusão mesmo assim acontece; mas o contrário não é verdadeiro, isto é, quando há acessibilidade arquitetônica e não houver colaboração e boa vontade, a acessibilidade não é suficiente para a inclusão.
O envolvimento desses colegas contagiou os demais de forma natural e, em pouco tempo, já recebia a colaboração e a amizade de todos. Nisto se visualiza que aquele projeto, “Ajudante do Dia”, não apenas resultou na construção de uma escola inclusiva, mas também de uma sociedade inclusiva, pois o resultando se estendeu ao longo dos anos e me acompanhou nessa nova escola.
Nos meses finais do ensino médio, fomos instigados a pensar e escolher uma profissão, a refletir o que faríamos de nossas vidas ao concluir essa etapa. Foi um momento em que eu poderia chamar de “crise de identidade”, pois até então eu não havia construído em mim a imagem de pessoa adulta, eu não possuía essa ideia. Ao longo da minha vida, caso alguém me perguntasse o que eu desejaria ser quando crescesse, muito provavelmente eu responderia que seria anjo. Então, nesse momento escolar, me deparei com uma revisão de vida: percebi que eu havia ultrapassado a idade prevista, e que eu tinha uma vida como a de qualquer outra pessoa, isto é, sem garantia de tempo; percebi que o amor e suporte familiar além de muito importante foi imprescindível; percebi que o desejo de vida aprendido foi meu melhor tratamento; percebi que a medicina é tão incompleta como qualquer outro conhecimento; percebi que a fé existe mesmo que não se explique pela ciência; e, por fim, percebi que eu poderia alcançar qualquer coisa se eu acreditar.
Diante dessas percepções, decidi meu caminho: eu iria cursar uma universidade e ser médico, mas não da Medicina, não seria médico do corpo, mas da alma, das emoções, do pensamento. Eu desejava ser psicólogo. No entanto, no que se refere ao curso superior, minha família inicialmente não acreditava que eu poderia cursá-lo e também não tinha condições financeiras para me dar suporte, contudo, fui teimoso em todas “realidades” e dificuldades apontadas. Fiz o vestibular e pelas avaliações da universidade me foi concedida uma bolsa de estudos. O transporte “escolar” me foi oportunizado pela administração pública municipal. Na universidade não havia nenhuma adaptação em relação ao espaço físico, mas conforme eu ia solicitando a adaptação era providenciada. Construíram-se rampas, elevadores, adaptou-se uma classe e entre outras adaptações.
O curso superior foi que me fortaleceu em nível pessoal/emocional para buscar ainda mais a integração social. Enquanto cursava a graduação em psicologia, começou minha necessidade de autonomia de deslocamento, tanto por causa do curso quanto dos estágios. Até então, eu sempre fui conduzido por outras pessoas, pois nunca tive força muscular de me empurrar sozinho na cadeira de rodas. Mas essa autonomia ainda estava longe da minha realidade e conhecimento de como adquiri-la. Lembro que eu fui à ortopedia comprar uma cadeira nova, mas uma cadeira comum ainda. Quando chegamos, fomos conduzidos ao depósito, pois lá se encontrava uma variedade de opções. De repente, vi ao fundo uma cadeira de rodas motorizada. Pedi para sentar nela, mas sem grandes esperanças de conseguir conduzi-la. Como tenho escoliose (curvatura da minha coluna), tudo precisava ficar a minha esquerda para que eu tivesse alcance. Aquele dia eu tive muita sorte, pois o joystick da cadeira estava afixado justamente na sua canhota. Enquanto minha mãe e o vendedor escolhiam a cadeira mais apropriada para mim, eu nem dava atenção a eles. Eu estava fascinado com a cadeira que eu estava sentado. Vi o botão on/off e tentei apertá-lo, mas não tive forças. Então coloquei meu dedo da mão esquerda em cima do botão e, com a mão direita, dei um tapa. O Led acendeu! Meu coração ficou disparado e minha mãe e o vendedor nem perceberam, continuaram olhando as outras cadeiras e conversando. Fiquei pensando se acionava ou não. O joystick assemelhava-se ao de videogame, mas com manche mais curto. Tentei forçar para frente, mas precisava de mais forças. Usei então as duas mãos! A cadeira andou! Com isso chamou a atenção de minha mãe, que ficou muito emocionada de ver-me saindo do lugar. Ela pediu-me para dar uma volta, mas consegui apenas puxar para direita. Faltavam-me forças para empurrar para esquerda.
– Será que tu não consegues filho? Perguntou ela! Lembrei-me então da física, da “força da alavanca”, e perguntei ao vendedor se não havia algo que pudesse deixar o manche mais comprido, pois na minha ideia, a força aplicada em pontos de extremidade da alavanca diminui proporcionalmente em relação do comprimento do braço de alavanca. Isso me daria uma vantagem mecânica. O vendedor encaixou um pedaço de cano no manche e minha hipótese deu certo. Eu conseguia agora facilmente direcionar para qualquer lado.
Fiquei atônito e minha mãe emocionava-se a cada movimento meu. Não descansei enquanto não adquiri aquela cadeira. Fizemos “Ação Entre Amigos”, resgate das economias de minha mãe, auxílio de colegas, e compramos a cadeira em poucos meses depois daquele dia tão feliz. Como o vendedor já havia deixado a cadeira como da última vez que a usei, ela estava pronta para o uso. Eram férias na faculdade, então minhas experiências iniciais de deslocamento eram em casa. No início eu não tinha noção de percepção espacial. Batia em tudo, raspava as batentes das portas de casa, arranhava móveis, foi um desastre! Mas aos poucos comecei a desenvolver muita habilidade. Desviava de obstáculos com muita destreza.
Comecei a sair na rua. Primeiro acompanhado de meus irmãos pequenos e depois sozinho. Adorava passear, visitar uma tia que morava próximo e ir ao mercado. Lembro que eu não sabia atravessar a rua. Olhava para os dois lados, mas não sabia o momento certo para atravessar. Então pensei: “Os carros que cuidem ora!”. E assim eu fazia, pois me sentia livre!
Terminaram as férias e agora era momento de me deslocar pela universidade! Percorria por tudo! Eu não gostava de andar devagar e adorava o desafio de desviar e ultrapassar as pessoas! Eu ia “costurando” a multidão pelos corredores em alta velocidade. Exceto nas fases de estresse. Nesses dias adorava andar lentamente nos jardins da faculdade e nos caminhos isolados. Gostava de sentir o ar livre e pensar nos desafios.
Eu ia sozinho à biblioteca, à lanchonete, à livraria, às lojas e até ao banco. Tudo dentro da universidade! Eu apenas precisava ajuda para ir aos auditórios, que eram em andares superiores e os elevadores não estavam prontos, então eram necessários vários colegas para me carregar, visto que a cadeira motorizada era muito pesada. Eu ficava por vezes com medo de cair ou de não ter ajuda para descer depois, mas fazia disso uma aventura.
Passaram-se dois anos e comecei gradualmente perder mais forças. Primeiro na capacidade de escrever e, em seguida, de dirigir a cadeira com a mesma destreza. Logo veio ainda a perda da força do pescoço em segurar a cabeça. Para subir rampas, passei a pedir para as pessoas segurarem minha cabeça, senão ela caía para trás. Algumas vezes, a trepidação de alguns desníveis do chão fazia com que minha cabeça caísse para frente, em cima do joystick. Isso acionava a cadeira e, sem conseguir me levantar sozinho, ficava sem controle e só parava quando batia em algo ou em alguém. Comecei a andar devagar e a evitar lugares isolados.
A perda motora foi se agravando, e o risco de acidentes em me deslocar sozinho também. Precisei então que desenvolvessem um assento especial de adequação postural, que fixasse meu corpo e minha cabeça. Este assento foi formatado para que se adapte a qualquer lugar, tanto na cadeira de rodas como em um banco de veículo.
Como portador de deficiência, pela amiotrofia muscular, senti falta de um programa computacional que agilizasse minha escrita. Eu perdia cada vez mais a força e movimentos das mãos e precisava de velocidade de digitação com o mínimo de movimentos possíveis. Usar caneta e papel me fadigava. Cada dia sentia a caneta mais pesada. A digitação de letra por letra, com um palito na boca para apertar as teclas do teclado, além de requerer mais esforços, não acompanhava meu raciocínio. Chegava a perder a ideia pela morosidade na digitação. Queria digitar meus trabalhos acadêmicos, participar de chats, MSN ou Skype, mas era inviável. Minha necessidade era urgente e precisava de uma solução!
O Mousekey foi a solução que desenvolvi para digitar textos com agilidade usando o mínimo de força e movimentos possíveis. Com esse aplicativo primeiramente comecei a digitar meus próprios trabalhos acadêmicos e, em seguida, comecei a fazer trabalhos de digitação para colegas e amigos, ganhando assim meus próprios recursos financeiros.
Quanto ao mercado de trabalho formal eu também encontrei dificuldades de aceitação, exceto pelos estágios voluntários e acadêmicos e, mesmo assim, concorria aos processos seletivos como todos os outros candidatos sem deficiência No período do estágio probatório me sobressaía como os demais.
Tenho enfrentado tais dificuldades sempre buscando alternativas para superar minhas limitações pela tecnologia, o uso de cadeira motorizada, Tablet, Smartphone, computador, etc. E, nas relações interpessoais, demonstrando minhas potencialidades, respeitando e buscando o respeito de minhas diferenças. Aprendi o que significa superação e que ela depende de mim, não do tamanho dos obstáculos. Aprendi a construir meu lugar, e não esperar por um.
Dos trabalhos remunerados que me eram oferecidos, ligados a programas de inclusão de pessoas com deficiência, nenhum preencheu minhas expectativas. Eu os via como a minha primeira série, não tinha nenhuma proposta de inclusão. Pareciam-me guetos, pois eram setores exclusivos com PCD (num deles, as pessoas ficavam de frente para uma parede separando parafusos) e não se comunicavam nem entre si. Além disso, todos eram trabalhos manuais, sem a necessidade da reflexão ou interação e com salários muito inferiores.
Então, durante o curso acadêmico, optei em fazer os estágios obrigatórios e voluntários em diferentes lugares, sempre atendendo os objetivos particulares e do curso. Queria qualificar-me profissionalmente e reunir experiências. Queria incluir-me nos espaços e não permitir minha exclusão.
Meu primeiro trabalho remunerado registrado em Carteira Profissional decorreu de um concurso público para Secretário de Escola. Apesar da cota para PCD, como os demais candidatos à vaga, também passei pelos mesmos processos seletivos e períodos de experiência. Fui inicialmente lotado numa escola pública de ensino fundamental, para atuar na secretaria escolar. No primeiro dia nesse trabalho (01/04/2002) me defrontei com a sinceridade de uma dirigente da escola, dizendo que frente às demandas urgentes da instituição, ela não poderia contar com uma pessoa como eu, com deficiência. Precisei assinar uma ata declarando com registro em cartório, que eu não tinha condições de abrir gavetas, atender portão e telefone e de me deslocar pela escola (que não possuía acessibilidade), dentre outras incapacidades.
Ao voltar para casa chorei muito, não só pelo temor de demissão por incompatibilidade com a função, mas por ter me sentido um inválido. Porém, refleti sobre minha trajetória vivida até o momento, recorri a minha fé e esperanças, pedindo a Deus serenidade e sabedoria para encarar mais este desafio. Resolvi erguer minha cabeça e encarar o segundo dia. Chegando à escola, me posicionei no computador e instalei o Mousekey. Também encontrei um aplicativo que estava sem uso na secretaria, que era o Procergs-Escola. Então o instalei e dei início à informatização da escrituração escolar. Entremeios a alimentação do banco de dados desse aplicativo, eu ainda digitava correspondências e textos para a supervisora escolar, e concluía com muita agilidade. Em três dias o banco de dados estava alimentado, isto é, a secretaria estava informatizada.
A Secretaria Municipal de Educação (SME) soube dessa minha capacidade com a informática e convidou-me para fazer parte da equipe. Sempre que lembro de minha entrada na SME, lembro-me do tratamento recebido, do carinho, do respeito, da credibilidade e da acolhida que recebi, e invade-me um sentimento de gratidão por cada colega.
Fui recebido pela Secretária e pela Diretora de educação que, naquele momento, simbolicamente me representavam dois anjos recolhendo meu sentimento de humilhação. Elas não apenas acreditaram nas minhas possibilidades como foram sensíveis em procurar eliminar qualquer barreira, adaptando espaços e mobiliários, preparando a equipe para me acolher e designando dois colegas para estarem mais próximos até que todos se envolvessem comigo. Foi uma experiência completamente nova e diferente para mim, pois preocupavam até com minha alimentação e hidratação durante o expediente, com minha participação nas confraternizações fora do trabalho e com meus deslocamentos entre os espaços, inclusive me carregando no colo quando preciso. Enfim, experimentei uma abordagem acolhedora e inclusiva, a qual eu não vivi em outro trabalho.
Uma colega descreveu em seu Trabalho de Conclusão de Curso:
Conheci Cláudio em uma tarde do mês de abril do ano de 2002. Eu estava ansiosa em conhecê-lo. Dias antes de sua chegada, nosso grupo de trabalho foi informado de que receberia um colega deficiente. Esse colega havia sido aprovado no concurso público, mas o local para o qual foi designado, uma escola, argumentava que ele não tinha condições de exercer as funções que seu cargo de secretário de escola exigia, como: atender as pessoas na secretaria, abrir e fechar armários, mexer em documentos, atender o telefone. A Secretaria de Educação foi comunicada pela escola e, como mantenedora, tinha naquele momento o dever de “olhar” para a situação e tentar resolvê-la da melhor maneira possível. Havia uma pessoa deficiente, um trabalhador legitimamente contratado, com dificuldades de inserção no ambiente de trabalho. Cláudio prestou concurso público, amparado na Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, art. 7º, que prevê a proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência e na Lei nº 8112, de 11 de dezembro de 1990, art. 5º, que afirma: “às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público; serão reservadas até 20% das vagas oferecidas no concurso”. A Prefeitura de Esteio tem outros funcionários deficientes, mas na Secretaria de Educação ainda não tínhamos vivido essa experiência com um funcionário, somente com alunos nas escolas.
Por meio do relato da escola, ficamos sabendo que Cláudio parecia “dominar” o computador. Causou-me estranhamento quando soube disso. Como uma pessoa deficiente, que não movimenta braços e pernas, utiliza o computador? Mas foi justamente esse detalhe que fez toda a diferença. Precisávamos na Secretaria de uma pessoa para o então setor de digitação e ele parecia preencher os requisitos necessários, não fosse pela deficiência.
Inicialmente tinha a função de digitador, já que através do Mousekey essa era minha capacidade mais evidente para meus empregadores, senão a única. Mas após mostrar minhas demais competências, como desenvolver um projeto de formação destinado aos Secretários de Escola e um projeto de elaboração de um periódico com artigos da área da pedagogia, passei a integrar o então chamado Núcleo de Editoração e Eventos.
Nessa época nossa equipe se envolveu com um desafio político muito intenso e que necessitou muita coragem das gestoras do executivo, da qual me orgulho de estar presente: a Secretaria Municipal de Educação tomou a decisão de incluir nas escolas municipais comuns os alunos da escola municipal especial. Para tanto, as escolas precisaram se tornar inclusivas e a escola especial ser fechada, dando espaço para criação do Centro Municipal de Educação Inclusiva. Enfrentamos recusa de professores, insegurança de famílias, movimentos populares e resistências partidárias. Mas com competência e firmeza as mudanças se concretizaram, usando encontros de formação como principal instrumento de luta. Eu acompanhava a transformação das escolas que um dia me negaram a entrada.
Retomando essa trajetória narrada, posso então dizer que já tive salas com degraus, já tive barreiras de acesso ao currículo escolar, e ao local de trabalho, já sofri preconceitos e já superei cada desafio. Na educação básica não tínhamos que reclamar de qualquer coisa, pois era um “favor” eu poder estudar. E nem tínhamos mesmo que reclamar, pois afinal, já que me aceitaram na escola por desejo solidário e não por obrigação legal, encontrei na maioria das pessoas a disposição e sensibilidade em me incluir. Sem Diretrizes Operacionais, sem Resoluções e sem uma Política Nacional que mostrassem o caminho a seguir, os professores iam intuitivamente e empiricamente construindo a sua própria inclusão, calcada no bom senso que os ajudavam a filtrar os procedimentos que funcionavam. Desse processo resultou, com o passar do tempo, um ‘jeito’ de organizar e conduzir o ensino para mim.
Eles se permitiram errar até acertar. Claro que os erros deles me eram sofríveis, mas o desejo genuíno em acertar, não permitia nenhuma semente de mágoa minha germinar, e regava a paciência necessária em minha mãe para dar-lhes o tempo de encontrar o caminho certo.
Às vezes penso que, se minha mãe não percorresse todas as escolas até encontrar uma que me admitisse; se não tivesse a esperança, a fé e a resistência em aceitar os preceitos clínicos; ou se tivesse me colocado em uma escola de educação especial; e, ainda, se eu não tivesse encontrado apoio na tecnologia assistiva, talvez hoje eu não seria Bacharel em Psicologia pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) ou especialista em Psicologia da Saúde, nem em Neuropsicopedagogia. Não teria sido aluno convidado pelo querido amigo Hugo Otto Beyer (in memorian) para estudar com ele, na linha de pesquisa em Processos de Exclusão e Participação em Educação Especial do Programa de Educação Continuada de pós-graduação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Não teria atuado como pesquisador em doenças crônicas e promoção da Saúde e Qualidade de Vida no Hospital Municipal São Camilo, ou como estagiário em Psicologia Clínica no Hospital Independência, nem como monitor de estágios e trabalhos voluntários do Programa de Manuseio e Estimulação Sensorial no Lar Santo Antônio dos Excepcionais em Porto Alegre. Também não teria sido assessor no Núcleo Administrativo, de Editoração e Eventos da Secretaria Municipal de Educação de Esteio/RS (SME), nem teria sido editor da Revista Aprender é Movimento, dos Cadernos Pedagógicos e de outras publicações da SME.
Ou seja, é muito provável que não tivesse me construído e me desenvolvido dessa forma. Não seria quem hoje sou.
Realizei novo concurso na mesma prefeitura, para o cargo de Psicólogo, e integrei a coordenação de Gestão da Educação Básica na mesma Secretaria Educação, coordenando a política de educação especial na escola comum, os laboratórios de aprendizagem e os laboratórios de informática das escolas municipais. As mesmas escolas que um dia negaram minha matrícula, nesse momento abriam-me os portões para que eu as levasse as diretrizes que as tornariam escolas inclusivas, isto é, de educação inclusiva.
Estive presidente do Conselho Municipal de Educação e conselheiro no Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência, além de ter sido presidente no Conselho Municipal de Acompanhamento e Controle Social do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB. Hoje, minha atual função na Prefeitura de Esteio é a de Coordenador do Polo UAB Esteio. Este Polo é uma parceria entre a Prefeitura Municipal de Esteio e o Ministério de Educação – MEC, através da Universidade Aberta do Brasil (UAB), que é um sistema integrado por universidades públicas que oferece cursos de nível superior para camadas da população que têm dificuldade de acesso à formação universitária, por meio do uso da metodologia da educação a distância.
Toda essa trajetória narrada levou-me as razões da escolha da Linha de Pesquisa em Informática na Educação. Por isso, no mestrado, discorri que, com o advento do paradigma de um sistema educacional inclusivo e de uma sociedade inclusiva, assume-se o compromisso de garantir que as pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema geral de ensino, nem das atividades sociais comuns. Para tanto, adequações precisam ser realizadas com vistas a possibilitar sua efetiva participação em ambientes que maximizem seu desenvolvimento acadêmico, laboral e social, respeitando à dignidade humana das pessoas com deficiência e a promoção de suas potencialidades, aprendizagens, criatividade e participação.
Apesar de todas essas conquistas e de acreditar que ainda posso trilhar novos caminhos, tenho claro que carrego uma doença progressiva, que ela afeta meus músculos e que, em algum momento, poderei perder todos os movimentos, inclusive a deglutição e a fala.
No entanto, após perder pessoas que me eram queridas, nas quais não se esperava sua partida antes da minha, aprendi que hoje estamos no mundo e amanhã poderemos não estar, independente de condições de saúde. Eu aprendi que cada um tem a vida por um fio, e que não são as doenças e as limitações que determinam sua intensidade, mas sim o ponto de visão em que ela é colocada, pois a vida é como uma lâmpada: ela não se apaga quando é posta embaixo da cama, ela apenas deixa de iluminar o todo; ela só se apaga quando a corrente elétrica deixa de acendê-la. Assim também são muitas pessoas neuroencarceradas ou em estado comatoso, sua vida não se apagou, apenas ficou oculta pelas circunstâncias.
Então, a exemplo do Mousekey, em que busquei superar minha incapacidade motora de escrita, busco encontrar soluções para minha provável incapacidade motora de comunicação. Para tanto, sem movimentos, precisarei contar apenas com as ondas cerebrais. Assim, logo após terminar o mestrado ingressei neste doutorado e apresentei o projeto chamado: A interação entre Interface Cérebro Computador e sujeitos com incapacidade motora grave para comunicação.
A proposta de pesquisa, no ato da apresentação à banca de avaliadores, ainda parecia distante de minha realidade pessoal, e eu almejava utilizar apenas com outras pessoas (sem comunicação) como sujeitos de pesquisa. No entanto, decorridos alguns meses após a defesa do projeto de tese, sofri uma insuficiência respiratória. Entrei em estado de coma e, para salvarem minha vida, fui traqueostomizado e conectado à ventilação mecânica invasiva. Ainda em coma eu ouvia da equipe médica a improbabilidade de voltar à vida e, caso voltasse, dependeria de aparelhos para me manter vivo. Mas em meu pensamento eu acreditava que poderia acordar, eu orava a Deus e repetia a mim mesmo: Acorda! Acorda! Após alguns dias, ao acordar deparei-me com minha mãe tentando me tranquilizar, pois eu estava conectado a diversos tubos e sem capacidade de fala.
Desta forma, o projeto de tese outrora defendido, nesse momento foi providencial para que eu me comunicasse. Com o auxílio do colega e amigo William Pedroso, a Interface Cérebro Computador que estávamos desenvolvendo foi levada onde eu estava: na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do Hospital São Camilo, em Esteio. Pude me comunicar por meio de ondas cerebrais. Mas o relato detalhado disso será apresentado no corpo desta tese, pois, ao contrário do que havia planejado, fui sujeito de minha própria pesquisa.
Depois de alguns meses, relutando contra as máquinas e novamente contrariando as expectativas, recuperei minha autonomia respiratória e fui descanulado.
Tal retirada da cânula gerou polêmica entre o cirurgião e a pneumologista, pois esta trabalhava no sentido de seguir um protocolo e me ajudar a que me adaptasse a uma vida com traqueostomia permanente. No entanto, ao retirar a cânula de minha traqueia para avaliar possíveis danos em minhas cordas vocais, glote e laringe, o cirurgião, que se apressava em devolver a cânula para poder me acoplar ao respirador novamente, surpreendeu-se que não ouve baixa de minha oxigenação. Então, ele ficou observando e conversando com a pneumologista acerca da retomada de minha autonomia respiratória, cogitando com ela a não dependência do respirador mecânico. Mas suas visões eram distintas e assisti certa discussão técnica entre eles, em que a pneumologista explicava-lhe o protocolo a ser seguido e a necessidade de eu permanecer canulado. Estes 10 ou 15 minutos de conversa foram suficientes para que parte da abertura cirúrgica da traqueia se fechasse e o cirurgião não conseguisse recolocar a cânula. Lembro-me da cena do cirurgião colocando suas duas mãos sobre sua cabeça e dizendo:
– Meu Deus! Que esse rapaz tem?! Isso leva semanas para fechar!
A pneumologista o ordenava ansiosa que recolocasse, fazendo com que o cirurgião forçasse a cânula em meu pescoço como se estivesse recolocando uma rolha na garrafa de vinho. O cirurgião, enquanto forçava, explicava-lhe que não daria sem nova cirurgia, mas a pneumologista apenas repetia para recolocar. Nisto senti muita dor, então arrisquei um grito. Minha voz saiu nítida e firme, e os dois ficaram pasmos, como estátuas, me olhando. Então, entre choro, disse que assinaria qualquer termo de compromisso, mas que não recolocassem em mim novamente aquela cânula. O cirurgião então me disse com olhos firmes: “Cláudio, tu não precisas assinar nada, não lhe farei nova cirurgia”. Dirigiu seu olhar para pneumologista e lhe disse também com firmeza:
– O Cláudio até agora nos surpreendeu em tudo, sua oxigenação não caiu, voltou a falar sem terapia de fonoaudiologia, que levaria meses, está estável, batimentos cardíacos não demonstra cansaço, não vejo sentido submetê-lo ao risco de uma nova cirurgia.
Olhou para mim e disse (dizendo a ela): – “a doutora irá providenciar um suporte ventilatório não invasivo“. E saiu.
Contrariada, a médica chamou a chefe do setor de Pneumologia, e ambas discursavam comigo tentando convencer-me da necessidade de uma nova traqueostomização para fins preventivos, explicando-me um protocolo baseado num quadro, num diagnóstico, com receio de considerar minha idiossincrasia e deixar-me em risco de nova insuficiência respiratória. Sentia-me um menino mimado e teimoso diante delas, mas embora eu soubesse que meu conhecimento não é maior que o delas, eu sabia que meu desejo era. Então não aceitei e providenciaram um respirador mecânico nasal (não invasivo), do qual utilizo várias vezes, ao mínimo de sinal de cansaço para evitar fadiga muscular.
Ao ter alta hospitalar, fui convidado pelo Comitê Olímpico para conduzir a Tocha Olímpica, então compartilhei nas redes sociais:
Minha alegria em carregar a Tocha Olímpica não se deu apenas pelo símbolo, ou por ter sido um dos 12 mil escolhidos entre 200 milhões de brasileiros. Também foi… Mas minha alegria se deu porque eu lutava pela vida. Então, enquanto eu carregava a tocha com minha mãe, passou um filme na minha cabeça… eu me lembrava dos momentos críticos que passei… de morte e de vida. De repente eu estava ali: numa rua com uma multidão, respirando sozinho, falando, vendo o sol, na minha cadeira motorizada, segurando com minha mãe uma chama!
Foi surreal! Foi uma ação Divina! Eu carregava a vida! Eu carregava a vida segurando uma tocha!
Posso continuar fazendo o que sempre fiz: lutar pela minha qualidade de vida e daqueles que vivem lutas semelhantes, e mostrar a todos que com fé em Deus podemos ir longe! Há um texto bíblico que diz: Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes (1 Coríntios 1:27).
Como eu ainda estava sobremaneira enfraquecido, e ainda tinha que manter as mãos na Tocha, minha cadeira motorizada foi controlada remotamente pelo amigo William Pedroso, que desenvolveu um sistema de automação que a controla via wireless através de seu smartphone.
Acredito, logo existo! Busco garantir, assim, ao escrever “P-O-S-S-Í-V-E-L” na minha história de prováveis impossíveis.